quinta-feira, dezembro 22, 2011

Somos todos Camilla Corrêa


Nessa semana, se tornou notícia a história da enfermeira Camilla Corrêa, que aparece em um vídeo, feito com uma câmera escondida, assassinando um filhote de cachorro. Ela o arremessa no chão, o acerta na cabeça com um balde e o sufoca dentro dele, tudo isso na frente de seu filho de três anos. Procurada pela polícia, Camilla disse que, apesar de pequeno, o filhote é um “monstro”. As imagens mostradas no vídeo são chocantes e vieram acompanhadas de uma grande comoção pública, dizem que o “monstro” é ela, que é desalmada, que deveriam lhe fazer o mesmo e torcem por uma resposta rápida da justiça.
Sendo um exemplo dentre tantos (alguns seguem abaixo), se tornou muito claro enxergar como os animais são parte da fórmula que evidencia a hipocrisia da nossa sociedade. Na língua falada pelos personagens do clássico “1984″ de George Orwell, duplipensar é a ação de “pensar algo duas vezes”, acatar dois conceitos mesmo que um deles anule o outro, ou seja, é aceitar duas ideias sem atentar para suas incoerências. Em casos de maus-tratos a animais que ganham visibilidade da mídia, o duplipensar é um verbo que se mostra extremamente conveniente, Camilla não merece nosso desprezo ou ódio, não mais que todos os procedimentos necessários para possibilitar o almoço da maioria dos brasileiros. São poucos os que percebem essa incoerência e, por isso, as reações são tão extremas.
Cachorro no cardápio
No ano passado, ganhou destaque o caso de um restaurante no bairro Bom Retiro da cidade de São Paulo em que cachorros e gatos eram servidos no cardápio. Como de costume, os brasileiros se revoltaram com a situação e o negócio foi fechado. Mas o que mais se ouvia entre os comentários não era sobre higiene ou sobre as condições sanitárias da carne, a revolta partia do fato de serem cachorros e gatos, não suportavam a ideia de existirem pessoas capazes de se alimentar com o mesmo ser dócil que corre feliz pelos quintais de suas casas. Quem teria desafiado as “hipocriaturas” ao lembrar do aspecto estrutural da carne? Afinal, enquanto mamíferos, somos excelentes “churrasquinhos” potenciais. A diferença química entre a nossa carne, a de cachorro, a de gato e a de boi são mínimas. São inúmeros os relatos de soldados que, em zonas de guerra, sentem cheiro de churrasco e se sentem famintos antes de descobrirem que o cheiro vem de valas com corpos humanos incinerados. Somos nós mesmos quem colonizamos nossos sentidos para reagir a esses estímulos, mas em estados específicos, um pedaço cru de carne não desperta, pelo aspecto, fome até que tenha sido cozinhado e ganhe o aspecto de “bife”, onde não está nem uma parte de um organismo, muito menos um animal, isso para o cidadão comum no seu exercício rotineiro de duplipensar. Adoramos “coisificar” os seres, tarefa ainda mais fácil quando os particionamos: não é uma vaca, é alcatra, maminha e picanha; não é uma mulher, é coxa, peito e bunda.
Esse caso é preocupante, pois talvez nos diga algo mais sobre os revoltosos além do fato de não prezarem pela coerência. O restaurante era sul-coreano e atendia, não só a esses imigrantes, como a diversas etnias, em especial do sudeste asiático, onde a carne de cachorro e de gato são pratos comuns. A não ser que tenhamos na mente uma distinção lógica entre todos os animais que comemos e os cachorros e/ou gatos, caímos no risco de nos tornarmos etnocêntricos ou até racistas. Existem culturas que consideram uma abominação as vacas fazerem parte do nosso cardápio, para outras, comer cachorros é absolutamente natural, com que critério podemos criticar uma ou outra?
O vestido de carne
Uma das maiores polêmicas envolvendo a pop star Lady Gaga envolve sua aparição em um evento trajando um vestido confeccionado com pedaços de carne bovina (como vistos em açougues) costurados uns aos outros. Talvez tenha sido o momento de maior rejeição na carreira da artista, o público estava enojado com o mau gosto de Gaga.
Seda, cetim, camurça, lã, peles. Não são poucos os tecidos que usamos e que vem de animais, mas um deles desarticula em absoluto a chuva de críticas que atingiu a cantora e é justamente o mais comumente utilizado: o couro. Todos temos “couro”, mas convencionamos chamar de “couro” apenas os que retiramos de alguns animais como o boi, a cobra e o jacaré. Usamos couro nos nossos, cintos, sapatos, jaquetas, bolsas, carteiras, estofados… Qual é a lógica de termos condenado Lady Gaga em nosso julgamento moral? Por ela ter vestido outra parte do animal, aquilo que chamamos de “bife”? É anti-estético?
Diariamente, ONG’s como a PETA (Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais, na sigla em inglês) espalham campanhas pela internet com foco na indústria de peles que abastece luxuosas grifes de moda pelo mundo. Algumas peles, como a de chinchila e vison, são símbolos enraizados de status. Seja pelo alto custo, pela diminuição da oferta de espécies ou pelo risco corrido por fabricantes ilegais (que não são poucos), mas um grande casaco de pele, feito com dezenas ou até centenas de animais, continua sendo visto como um acessório digno da mais fina dama. Os contrários a esse mercado auxiliam na disseminação dessas campanhas direto de seus iPad’s muito bem protegidos em capinhas de couro bovino. Podemos provar, mesmo que para nós mesmos, a diferença substancial entre os animais que achamos dignos de defender e aqueles que achamos dignos de vestir? Não seria porque os primeiros são (literalmente) fofos? Na mesma internet por onde circula essas campanhas tão vazias quanto a ONG que as cria, circula também o vídeo de dois homens, um com um trompete, outro com uma tuba. Eles tocam ao lado de um pasto e as vacas do outro lado da cerca começam a se aproximar para ouvir melhor a música.
O sucesso do vídeo (mais de três milhões de acesso) vem do estranhamento da situação, não estamos acostumados com vacas ouvindo música, isso porque as enxergamos e as tratamos como produtos e, criadas com o fim de morrer cedo para suprir a demanda do mercado, é óbvio que elas se comportem como produtos. É através desse pensamento que invisibilizamos todas as potencialidades dos animais que transformamos em meras mercadorias.
Diversão
Há alguns anos, o jogador de baseball norte-americano Michael Vick, na época um grande ídolo do esporte, esteve no centro do desprezo público quando descobriram qual era seu hobby secreto: rinha de cães. Poucos estavam de acordo com o fato de Vick se divertir colocando cachorros para brigar e apostar nisso altas quantias de dinheiro. Mais uma vez, essa é uma crítica que pressupõe uma visão extremamente especista do mundo, depende de um duplipensar. O professor Gary Francione publicou, no ano da polêmica, um artigo em um jornal de Nova Jérsei entitulado “Somos todos Michael Vick” (que dá nome a esse texto) em que tenta mostrar aos leitores como as posições contrárias a Michael Vick culminam apenas por mostrar nossas próprias contradições. Fazê-los brigar, correr, fazer truques e montá-los são apenas algumas formas de como dispomos animais como meios de entretenimento. A própria cerimônia do churrasco se estabelece hoje como um momento de descontração e sociabilidade, nos divertimos e nos alimentamos, um especismo dentro de outro. O professor Francione diz que “alguns gostam de fazer rinhas de cães, outros de se reunir em volta de uma churrasqueira, qual é a diferença?”
Gary Francione é um professor de Direito e um dos principais teóricos do abolicionismo animal, que prega a extinção do status de propriedade dos não-humanos. Ele cunhou o termo “esquizofrenia moral” para se referir a essa forma paradoxal de lidarmos com animais e que reproduzimos pelo seu caráter socialmente conveniente. Temos animais na família que amamos como a qualquer parente, mas comemos outros nas refeições sem nenhum tipo de sentimento negativo, somos contra rodeios, mas usamos cremes com colégeno bovino porque funcionam melhor que os outros, ensinamos nossos filhos a respeitar os animais e os presenteamos com gaiolas e aquários, nos revoltamos com cenas de maus-tratos, mas começamos todas as manhãs com um grande copo de leite.
“Os escolhidos”
Apesar disso existe um grande esforço em nos ligar a certos animais. Pessoas batalhadoras são leoas, pessoas astutas são raposas, pouco inteligentes são burras, poderosas, tubarões, promíscuas, cachorroras ou galinhas, traiçoeiras, cobras. Todas ideias que reforçam preconceitos de espécie que, por conveniência, usamos para falar de nós mesmos, mesmo que só julguemos animais por qualidades humanas, o que não faz sentido algum. Alguns casos são mais úteis por nos esfregarem na cara um cúmulo de incoerência: quando transformamos em lições de vida a história de animais que escaparam aos seus destinos enquanto sub-espécies em uma sociedade como a nossa. Há alguns dias, um outro cãozinho ganhou a mídia quando, em uma enorme ninhada de cães marcados para morrer em um centro de zoonozes nova-iorquino, foi o único capaz de sobreviver à injeção letal. Esse acaso, ocasionado provavelmente por um bom sistema imunológico do animal ou por um erro na dosagem da substância usada na eutanásia, somado a um certo misticismo cristão, fez com que surgisse um enorme furor pelo cachorro, pessoas do país inteiro queriam adotá-lo. Milhares de animais são assassinados diariamente nos centros de zoonozes de todo mundo, atividade realizada com nossos impostos sob o pretexto de deixar as ruas livres de doenças transmitidas por eles, ataques e acidentes com os nossos (melhor estimados) carros. Porém, ao invés de adotarmos esses condenados à pena capital pelo seu trágico destino de terem nascido na rua, preferimos pagar por animais de raça: pitbulls, poodles, yorkshires; tudo porque os achamos mais bonitos ou porque acreditamos que combinam melhor com nossa personalidade. Para suprir a demanda por animais de “sangue azul” que existem empresas especializadas em “fabricá-los” em massa. Por que tirar um gato mestiço da rua ou do corredor da morte quando, por 200 ou 300 reais, podemos levar pra casa um gato de olho azul?
Estabelecemos ao cachorrinho sobrevivente um quê de milagre, como se uma providência divina houvesse impedido que ele morresse, como se não fosse sua hora de partir. Foi preciso levar uma dose letal de veneno para que surgisse uma identificação com o cachorro, todos queriam ter em casa o “escolhido”, talvez porque acreditem que traga bençãos ou boa sorte. Então foi justo o destino de todos os seus irmãos? Afinal, são filhos de Deus também. Ou não?
A história do “cãozinho milagroso” nos remete a muitas outras. São comuns histórias de animais “de corte” que se tornam de estimação ao escaparem do matadouro. Agregamos sentimentos aos seres que escapam ao sistema que criamos e que persiste graças aos nossos hábitos. Os animais que morrem nesse sistema pecam por sua incapacidade de não agirem como produtos.
Nossa contradição mais emblemática da relação com não-humanos está naquilo que dá vazão a todo o especismo: todos concordamos que é errado infligir dor a um ser sem necessidade. O problema está naquilo que consideramos necessário. Em um mundo onde um peru de óculos tem tendências ao canibalismo e as vacas sorriem estampadas nos rótulos de leite longa vida, onde o utilitarismo (mais dor, menos dor) ainda faz sentido, fica fácil dar uma resposta consensualmente aceita sobre o que é necessário. Mas enquanto dizer que tal animal serve ou não para morrer for algo tão comum e lógico para a maioria de nós, ainda será útil, por um saudável senso de auto-crítica, responder se somos todos hipócritas ou se somos todos Camilla Corrêa. Afinal, ela julgou um cachorro uma ameaça e, por isso, o matou. Matamos tantos animais diariamente com o mesmo propósito ou ainda por causas mais fúteis. Aos que dizem que o revoltante foi a tortura a que ela submeteu o bicho, é forçoso lembrar que a sua morte não é, em nenhum aspecto, mais penosa que a morte de qualquer animal que consumimos todos os dias. E igualmente desnecessária.

fonte: http://sindromedeapocalipse.wordpress.com/2011/12/17/somos-todos-camilla-correa/

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